<i>Sabes como morreu o valente Militão?</i>
A morte de Militão Bessa Ribeiro na Penitenciária de Lisboa, no dia 2 de Janeiro de 1950, constitui uma frontal acusação do fascismo e dos seus crimes. Não porque não tenha havido outros – que houve, e muitos – mas porque ele, pela sua brutalidade e crueldade, bastaria para revelar a natureza criminosa do regime que vigorou em Portugal até à madrugada de 25 de Abril de 1974.
«Sabes, ou alguém o sabe, como morreu o valente Militão?»
Pablo Neruda, A Lâmpada Marinha (excerto)
Por mais que se esforcem por o negar certos historiadores da nossa praça, em Portugal houve fascismo. Milhares de portugueses, por lhe resistirem e combaterem, foram perseguidos, presos e torturados. Muitos foram assassinados – sucumbindo, uns, à violência das torturas; caindo, outros, varados por balas; morrendo lentamente nas prisões, ainda outros, vitimados por maus tratos, trabalhos forçados e falta de assistência médica. Foram assim assassinados, no Tarrafal, Bento Gonçalves e Alfredo Caldeira; assim morreu, na Penitenciária de Lisboa, Militão Ribeiro, que à data da sua última prisão (a quarta) integrava o Secretariado do Comité Central do PCP.
Nesse fatídico Janeiro de 1950, o Avante! denunciava na primeira página: «Mais um crime do governo salazarista. Mataram Militão Ribeiro (António)! Que todo o povo português proteste contra mais este crime». A notícia, que furava o muro de silêncio imposto pela censura, valorizava a grandeza da vida do revolucionário falecido e revelava os pormenores da sua morte. Anos mais tarde, na brochura A Resistência em Portugal (escrita por José Dias Coelho, ele próprio assassinado pela PIDE em 1961) insistia-se na denúncia: Militão Ribeiro fora vítima de um «crime lento, dos que não deixam vestígios».
De facto, quando é preso no Luso, em Março de 1949 (juntamente com Álvaro Cunhal e Sofia Ferreira), Militão Ribeiro encontrava-se já com a saúde debilitada por nove anos de prisão, seis dos quais passados no Campo de Concentração do Tarrafal. Padecia sobretudo dos intestinos e do fígado, o que há muito lhe provocava sofrimento e – como confessa numa carta que, a partir da Penitenciária, consegue fazer chegar à direcção do Partido – levava a que cumprisse com esforço as suas exigentes tarefas partidárias.
Nessa mesma carta, escrita em Novembro de 1949, Militão Ribeiro garantia que estava a ser «assassinado aos poucos da forma mais cobarde». O crime inicia-se nas instalações da PIDE do Porto e prossegue na Penitenciária de Lisboa: os maus tratos, a alimentação e medicação desadequadas e a falta de assistência médica foram as armas usadas pelo fascismo para aniquilar o grande revolucionário que foi Militão Bessa Ribeiro. Revelaram-se tão eficazes como pistolas.
Para lá dos limites…
As cartas de Militão Ribeiro constituem uma vibrante acusação dos crimes do fascismo e dos métodos desumanos a que recorria para aniquilar os mais destacados antifascistas. E testemunham, ao mesmo tempo, o terrível sofrimento por que passou nos últimos meses da sua vida: «Tenho sofrido o que um ser humano pode sofrer. Nem sei como tenho tido forças para tanto», garantia na primeira das missivas, já referida.
Nos 46 dias em que esteve nas celas da PIDE do Porto sofreu duas intoxicações, a segunda das quais agravada por uma febre elevadíssima. Privado de tratamento adequado, chega à Penitenciária de Lisboa «num estado de fraqueza total», mas também ali lhe foi negada a medicação de que carecia. Os efeitos foram desastrosos: «Estive 25 dias sem evacuar, pois o médico deixou de me ver e não medicou outra qualquer coisa; até um clister me foi recusado. Fui obrigado, por esse motivo, a deixar de comer, como protesto, e assim estive 15 dias, ao fim dos quais já mal conseguia salivar.»
O dramático dia-a-dia de Militão Ribeiro na sua quarta e última prisão é relatada na primeira das cartas que enviou ao Partido: «Mesmo quase já cadáver, ainda fui esbofeteado por um agente. Dores, insónias, agonias, tudo tenho sentido nestes sete meses, quase sempre na cama, sem me poder quase mexer».
Em Outubro de 1949, o advogado oficioso Mário Ferreira fica impressionado com a situação em que se encontravam Álvaro Cunhal e, sobretudo, Militão Ribeiro. A este último achou-o «num estado físico e mental de tal forma que o advogado signatário ficou com a impressão que pouco tempo lhe resta de vida». O sobrinho, que o visitou na enfermaria da Penitenciária, escreveu à família no dia 2 de Janeiro a partilhar as suas impressões: o tio encontrava-se num estado «terrível», apresentando o «aspecto físico dos internados nos campos de concentração nazis. Só tem pele e osso. Atrofiado de todo».
Nesse mesmo dia, morria Militão Ribeiro. Consumava-se mais um crime hediondo do fascismo.
Dignidade e confiança
Se as cartas de Militão Ribeiro e os testemunhos daqueles que o acompanharam nos últimos momentos de vida provocam horror, algo mais sobressai da forma como o dirigente comunista encarou os seus carrascos e a própria morte: a firmeza de carácter e convicções. Na primeira carta, reafirma que «com todo este sofrimento nunca deixei de ter fé na nossa causa. Sei que venceremos. Desde sempre mantive a disposição de dar a vida pelo Partido em todas as circunstâncias, assim como a dou de uma forma horrível e cheia de sofrimento».
Embora agonizante, afirma a sua certeza na capacidade do Partido de «vencer todos os obstáculos e levar o povo à vitória, mantendo essa disciplina e controlo severo de uns sobre os outros em trabalho colectivo, como vínhamos fazendo e aperfeiçoando. Que infelicidade minha só aos 50 anos ter começado a trabalhar dessa forma. Felizes os que vêm novos para o Partido e o encontram a trabalhar assim.»
Nesta carta, que bem poderia ser a última, tal o estado em que se encontrava, as últimas palavras são dirigidas ao Partido e aos seus camaradas: «Adeus para todos com um abraço fraternal. Longa vida, longa liberdade, boa saúde e bom trabalho. Avante até à vitória final.» O mesmo se passa com aquela que foi de facto a sua derradeira missiva, escrita com o seu próprio sangue: «Que a minha morte traga novos combatentes à luta.»
Perante a morte, como ao longo da sua intensa vida de revolucionário, Militão Bessa Ribeiro foi um comunista convicto e determinado, que colocou o melhor das suas capacidades ao serviço do Partido, não se detendo perante as adversidades e os perigos – e tantos e tão duros que foram. É um dos responsáveis por o PCP se ter tornado na força dirigente da luta antifascista, com forte implantação junto dos trabalhadores e do povo.
Herói do Partido e do povo
Nascido em Murça em 1896, Militão Bessa Ribeiro emigrou para o Brasil ainda jovem, onde se fez operário, sindicalista e membro do Partido Comunista do Brasil. Repatriado pelo seu envolvimento nas lutas operárias, consegue evitar a prisão e regressar à sua terra natal, onde toma contacto com o PCP e com o Socorro Vermelho Internacional.
Em Julho de 1934, é preso pela actividade que desenvolvia junto dos camponeses transmontanos. Julgado e condenado a 12 meses de prisão, é enviado para Peniche e daí para Angra do Heroísmo e, mais tarde, para o Tarrafal. No Campo da Morte Lenta integra, com Bento Gonçalves e outros, a direcção da Organização Comunista Prisional do Tarrafal.
Libertado em 1940 (após seis anos de prisão), regressa a Portugal e retoma a actividade partidária, participando na reorganização de 1940/41. Integrava o Secretariado aquando da sua segunda prisão, em Novembro de 1942, que o leva de novo ao Tarrafal.
Libertado em 1945, participa no IV Congresso do PCP, realizado no ano seguinte, e volta ao Secretariado, juntando-se José Gregório, Manuel Guedes e Álvaro Cunhal, com quem é preso no Luso, em Março de 1949.